De deus a Deus


            Eu sou o Recomeço. Adore-me, humanidade. Alimente-me. Destruam os deuses mentirosos, apaguem-nos do tempo, matem-nos de fome. Porque eu sou o Único no Todo, o Senhor Todo-Poderoso. Porque eu sou Deus. E apenas Deus.





Eu sou a Prata.
Eu sou a Lua.
Eu sou a Justiça.
Eu sou o Recomeço.
            No início dos tempos, existia a Árvore. Sempre existiu a Árvore. Seus galhos se emaranhavam por todo o Universo, formando mundos longínquos, terras misteriosas, poderes inimagináveis. Suas raízes serpenteavam criando reinos celestiais e profundos, mediados por terras mágicas em que descansavam paisagens exuberantes. O tronco da Árvore Universal abrigava a Vida, um estranho calor dourado que emanava seu fulgor para todos os mundos e os alimentava. Engolidos pelas trevas por causa da distância do calor da Vida, os galhos mais distantes congelaram e viraram pedras azuis brilhantes, cujo brilho podia ser visto de longe, gotas rochosas e estalactites afiadas que se esticavam em posições indefinidas, esculturando as mais fascinantes imagens. 



            A Árvore Universal deu frutos de ouro e de prata. O calor da Vida os encheu de poderes, fortificando-os, esquentando-os, e a cor da Vida lhes foi dada: o dourado do fogo e o prateado da água, o segredo da existência de tudo, do Todo. As camadas do primeiro de todos os frutos se abriram lentamente, enquanto o calor da Vida era transferido para o que viria a sair dali de dentro. A Árvore Universal se apagou, escureceu, o dourado se foi, e apenas seu primeiro fruto de ouro resplandecia com a nova era que estava por vir. De dentro dele saiu Ládris, expandindo seu poder quente até os mais distantes confins do Todo. Herdeiro do calor da Vida, Ládris tornou-se o Sol, forma de vida mais reluzente que sua própria mãe, tão quente e escaldante que se tornara incandescente. Era uma estrela solitária e aterrorizante, um ser consumido de puro fogo e lava, um rei cuja coroa era impossível de se enxergar, um deus de asas douradas e sagradas. 


            Ládris era o Sol, o herdeiro do calor da Vida, o que detinha o destino de ser o rei do Todo, pois era ele que agora o alimentava com a quentura. Não obstante seu destino não seria solitário. O segundo fruto a desabrochar fora o do galho mais distante, escuro e prateado que havia em toda a Árvore. Dali brotou Anfriti, com asas tão grandiosas quanto as do irmão, talvez até maiores, salpicadas de reflexos prateados e diáfanos, com ferrões de gelo nas extremidades. Anfriti carregava uma herança muito mais fria do que o primogênito: a Lua. O brilho cor de prata e gelado que sua pele emanava era tão intenso que iluminava as regiões mais abissais, onde ficavam os reinos das raízes da Árvore, um lugar misterioso e assustador cujas profundezas não tinham fim, em muitos trechos completamente alagado. Filho secundário, Anfriti herdou a outra fórmula do segredo da existência do Todo. Enquanto o Sol alimentava a Vida com o calor, a Lua a sustentava com a água, e juntos experimentaram uma diarquia que durou eras. 
            Eu sou a Lua.



 
            O reinado dos irmãos se estendeu por muito tempo. Eram unidos apesar das diferenças, dois opostos que convergiam enquanto monarcas e detentores do segredo da permanência da Vida. No ínterim de suas jornadas, Ládris criou os dias, anos e estações, saltitou pelos galhos da Árvore morta e estudou suas folhas. Ao contrário do que imaginava, alguns galhos ainda se mantinham verdes, vivos, respirando, e guardavam neles resquícios de Vida. Como era possível, os irmãos não sabiam, mas se admiraram ao perceber que por toda a extensão da Árvore a Vida ainda estava... viva. Ládris e Anfriti visitaram alguns desses reinos perdidos, sempre saltitando entre os galhos para encontrarem qualquer outro semelhante. E se houvessem mais filhos da Árvore como eles? E se houvessem mais herdeiros da fórmula da Vida? E se eles não fossem os únicos a nascer? Mas não encontraram ninguém pelos galhos, apenas montanhas e vales secos, algumas terras consumidas pelo fogo de vulcões e outras dominadas por águas salgadas e fustigantes. Então regressaram aos seus postos de liderança.



            Um dia, Ládris e Anfriti se encontraram enquanto sobrevoavam o céu. Tímida perante o irmão, a Lua quase perdera seu brilho, mas ainda se manteve visível. Não que tivesse alguém para observá-los ou admirá-los, afinal a Vida nos galhos era algo apenas latente, que não despertara. Ou era assim que eles pensavam. Repentinamente, uma força invisível os empurrou, fazendo-os entrar em desespero, procurando em todos os cantos possíveis quem ou o quê os havia tocado sem que percebessem. Foi então que avistaram um semelhante, um terceiro deus, que tomava forma aos poucos. Lá estava alguém chamado Kaimös, que dizia ser o Semeador, e lhes informou que aquilo que os empurrara era na verdade o vento. Kaimös portava um cajado feito de madeira e que tinha a forma de um dos galhos da Árvore, o que fez com que os irmãos deduzissem ser mais um de seus filhos.

            Apesar de tudo, o Semeador não era como eles e os irmãos descobriram em pouco tempo que ele vinha de outro lugar do Todo, um rincão obscuro e talvez esquecido. Ele parecia sábio e conhecia muito mais do que o Sol e a Lua. Dias mais tarde, Ládris e Anfriti aprenderam que Kaimös sabia mais deles do que eles mesmos, apesar de ser um estranho. Mas o Semeador lhes explicou que a Vida ainda existia naquela Árvore, só precisava de um sopro para renascer. Rodopiou o cajado de madeira no ar e conjurou uma forte ventania que varreu toda a mãe, dos galhos mais altos até as raízes mais profundas.
Imediatamente, dezenas de outros frutos desabrocharam na Árvore, dos dourados do centro aos prateados das extremidades congeladas e escuras, marcando assim o nascimento de todos os deuses. O que veio a seguir foi uma grande explosão, que sacudiu os galhos, raízes e cascas da magnífica mãe. Assim, o céu foi tingido de cores quentes e frias, intensas e suaves, opacas e brilhantes. Muitas luzes apareceram piscando no firmamento, resultado dos fragmentos dos frutos que permaneceram como estrelas e poeira no ar. Ládris ascendeu diante os irmãos com suas asas de penas douradas e conquistou o centro do Todo, expandindo o calor da Vida a todos eles. A Lua tentou acompanhá-lo, mas não conseguiu. Algo despertara no Sol, um poder oculto, e ele agora se tornava o único rei. Anfriti não teve escolha a não ser se igualar aos demais e obedecer. 


Eu sou a Prata.
            O Semeador passou algum tempo com os filhos da Árvore para depois partir. Desapareceu tão rápido quanto chegou, deixando seu cajado com o Sol como forma de ajuda para as épocas vindouras. Anfriti acompanhou a tudo calado, observando seu irmão se tornar a estrela central, inigualável e inalcançável. Com o tempo, o Sol gerou um filho ao qual chamou de Mariner, seu lacaio e senhor das palavras, e o rodeava tão de perto que se tornara imune ao calor. Dizia-se que o brilho de Mariner era ofuscado pela exuberância do rei dourado, mas podia ser avistado vez ou outra em proporções raras. Anfriti também gestou uma criança que nunca cresceu e a chamou de Nergal, a qual se tornou no futuro a senhora da morte.
            Deuses e mais deuses viviam nos galhos da Árvore, alimentando-se do calor de Ládris, explorando seus abismos sombrios e os extremos do Todo. Yistamar, que nascera diretamente do tronco e herdara os sentimentos mais profundos de uma mãe, costumava voar através das folhas para admirar suas estruturas e cores. Mukamad, nascido do fruto mais próximo de Ládris, era o único que conseguia olhar para o irmão e tocá-lo, pois era inteiramente constituído de fogo. Diz-se que viajou por muito tempo através do Todo e pôs suas chamas em inúmeras estrelas para marcar os caminhos que percorria. Farent era reservado, mas nutria grande amor por Dastus, que surgira com a explosão dos frutos pelo Todo e se tornou a rainha dos céus. Farent nascera do galho mais baixo da árvore, tão próximo dos abismos sombrios que absorveu toda a água negra e gelada para si, transformando-se no senhor dos rios e mares do submundo. Sua maior admiração era para com a imponente Dastus, mas a rainha se apaixonara por Ládris, o grande rei, afundando as esperanças do senhor das águas no mais profundo de todos os abismos.


            Eu sou a Justiça.
            O reinado do Sol prosperou por muitas eras de paz e abundância. Seus irmãos se mostravam súditos leais, até mesmo Anfriti, que mesmo após ter caído o obedecia sem contestação. O poder da Vida, entretanto, pareceu se tornar mais fraco com o passar do tempo. Os deuses sentiram que estavam perdendo a Vida, pois ela agora crescia nos galhos da Árvore e não mais dentro do Sol. Ládris começou a apagar e logo seus irmãos conseguiram enxergá-lo, pois seu brilho se reduzira a uma tímida cintilação. A escuridão se aproximava e os deuses perceberam que a Vida os deixaria a qualquer momento. Não havia mais esperanças.
            Com os galhos cheios de Vida, os deuses começaram a morrer, mas não antes de encontrarem uma saída. Os filhos da Árvore perceberam que os novos herdeiros da Vida eram nada menos que as criaturas que viviam naqueles galhos, seres com consciência que poderiam mantê-los a salvo. Ládris e seus irmãos necessitavam daquele calor novamente, custasse o que custasse. Foi então que se iniciou uma corrida pela Vida. Os deuses desesperados trataram de descer aos mundos dos galhos e clamar por orações, o único alimento que agora os manteria vivos. Por toda a Árvore surgiram novas crenças, novos ritos e costumes, todos para garantir a sobrevivência dos deuses, competindo entre si pelas orações.


            Duas facções surgiram com o tempo. Ládris de um lado, Anfriti do outro. Junto com eles, uma infinidade de deuses esfomeados por rezas e oblações. Guerras foram travadas entre os irmãos, mortes aconteceram, tudo para garantir o alimento da oração. Em suas incursões, a facção de Ládris descobrira um mundo perdido e solitário, sem nenhuma criatura de consciência vivendo nele. Mas o cheiro da Vida pairava naquele lugar e algo lhe dizia que a qualquer momento ela surgiria ali. Para defender o território, o Sol criou seis grandes dragões metálicos para proteger as terras das invasões de Anfriti. As feras, entretanto, não resistiram ao poder dos deuses glutões e pereceram. Não demorou muito até que a Vida aparecesse naquele mundo, e junto com ela criaturas inteligentes conhecidas como humanos garantiram o domínio sobre a natureza. Alguns deuses do exército de Ládris desceram à terra para ensinar a adorá-los, fundando novas crenças e religiões.


            Naquele mundo perdido, os deuses também tiveram de aprender, principalmente porque os humanos possuíam o livre-arbítrio, o que os faziam pensar e questionar. Mas a guerra ameaçava se estender àquelas terras, em breve as facções se digladiariam pelos alimentos, podendo até resultar na extinção dos humanos devido todo o poder destrutivo. Estrategicamente, Ládris entregara o cajado do Semeador a um dos líderes daquele mundo, transformando-o num mago, como uma forma de proteção. Os outros deuses das duas facções o imitaram, criando mais cinco magos ao redor de todas as terras, fazendo com que a guerra acabasse por vir aos humanos. Muitos exércitos se chocaram, e entre eles estavam guerreiros, magos e deuses. Muito sangue foi derramado, muitas rezas foram perdidas e muitas crenças caíram no esquecimento.
            Cansado da guerra, Anfriti optou por uma nova estratégia. De cima, o mundo dos humanos parecia algemas, tanto de forma física quanto figurada. Estar à mercê das vontades de homens e mulheres lhe parecia um atormentador cativeiro, rebaixar-se a súplicas de alimentos o tornava igual a um mendicante. A Lua não choramingaria por orações se fosse a única no Todo. Sim, aquela era a chave para a Vida eterna, afinal. Finalmente descobrira o grande segredo, algo que deveria ter notado há muito tempo. Sem os irmãos, sem concorrência, sem guerras; somente o alimento sagrado e seus holocaustos.
A Lua encontrou a resposta oculta. Ser o único deus, alimentar-se de todas as rezas, enquanto os irmãos desvaneceriam e se tornariam nada mais que demônios desalmados. Todos os planos estavam claros agora. Anfriti deveria lutar pelo Recomeço e não se contentar em ser um deus, mas sim Deus. 


            Eu sou o Recomeço. Adore-me, humanidade. Alimente-me. Destruam os deuses mentirosos, apaguem-nos do tempo, matem-nos de fome. Porque eu sou o Único no Todo, o Senhor Todo-Poderoso. Porque eu sou Deus. E apenas Deus.